Segunda-Feira, 8 de Maio de 2006.Corto caminho entre os carros parados no congestionamento que a tenra hora da cinzenta manhã de segunda proporciona. Contorno as grades de ferro, subo rampas, entro no velho bloco de (in)concreto, irrompo portas, uma a uma...mais uma última e chego. Aonde ?
Sala de aula quase vazia, somente um amigo...e ele já tem problemas suficientes para eu o afrontar com o desabafo dos meus.
Sim, detesto manhãs de segunda-feira...meu asco com a grande parte das pessoas que me circundam na sala faz com que eu olhe por reflexo para janela, no exato momento em que vislumbrei um outro reflexo (o de um raio) rebatido nas vidraças. A coincidência me diverte. Mantenho a janela em vista...esperando que um fenômeno semelhante voltasse a acontecer. Uma
reles curiosidade infantil, admito...
Domingo, 7 de Junho de 1987.Aquela estranha luz branca que é disparada daquela estranha caixinha preta que minha mãe está segurando aumenta meu estranhamento com absolutamente tudo o que me rodeia...mas, por hora, fico fascinado com o objeto, e espero – ansioso – que outro fascinante clarão venha daquele lugar, o que de fato ocorre, me dando uma
alegria inexplicável.
Estou em frente de casa e tudo o que me rodeia desperta a fascinante fascinação e é combustível para minha enorme e imensa curiosidade (não me recriminem pelas redundâncias, tenho apenas dois anos e meio de idade e ainda não aprendi a ler e escrever) pelo
grande mundo estranho que me rodeia...na minha própria rua (na verdade eu sequer entendo o conceito de
mundo, mas isso pouco importa, a partir do momento em que eu não sei o conceito de
conceito).
A árvore quase sem folhas da frente de minha casa (é final de Outono, isso é interessante constar) desperta minha súbita atenção. O que aconteceu com as folhas ? eu me lembro que haviam folhas !! Eu as via da janela do meu quarto !!! Para aonde elas tinham ido ?? Por quê haviam se ido ???...e, procurando atentamente pelas folhas desaparecidas nos galhos inermes meus olhos esbarraram no sol de quase-solstício. Oh, meus olhos sempre foram sensíveis, imediatamente abaixo a cabeça para direção ao chão e ameaço um choro. Mas, eis que duas folhas secas, arrastadas pelo vento no canto da calçada me reavivam a curiosidade...desisto de chorar, por enquanto.
Segunda-Feira, 8 de Maio de 2006.Estou sentado no pátio do prédio. Observo com curiosidade anormal, próximas de mim, as folhas secas que minhas botas pisaram agora pouco, de fato...também observo com certa curiosidade os seres humanos que se amontoam próximos a mim, alguns com pouco interesse, outros com uma quantidade de interesse um pouco maior.
Os seres humanos me dão uma tristeza inexplicável.
Eis um homem insignificante que não presto atenção...eis uma moça pouco digna de nota...eis aquele professor com
sorriso canalha que sempre me cumprimenta...eis uma moça que me desperta sentimentos mistos de
raiva e
orgulho...e
vergonha.
Sentir raiva e orgulho ao mesmo tempo me dá uma imensa vergonha...Desvio os olhos para outro lugar, mantenho-me firme...mas pouco importa, sou mesmo um
homem ridículo por ainda me importar com isso tudo.
Domingo, 7 de Junho de 1987.Um gato passa correndo perto de mim, e é lógico que, por uma
curiosidade puramente instintiva, tento correr atrás dele, porém minhas pernas ainda claudicantes e pouco confiáveis não permitem tal proeza.
Minha mãe me segura no exato momento em que eu começava a desabar sobre mim mesmo...eis então que sinto pela primeira vez uma sensação estranha, vazia...que anos depois eu saberia explicar perfeitamente.
Frustração.
A frustração é um sentimento relativamente simples e muito verdadeiro; porém para mim era o que bastava no momento, eis que tinha a
lição de vida do dia. Irritado, desviei o olhar para o velho e ornamentado portão preto de pouco mais de um metro de altura...uma das coisas das quais anos mais tarde eu sentiria
notável nostalgia.
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Extrapolando, seria talvez um símbolo (?) da criança aguerrida (embora terrivelmente tímida) que estava se formando ?? Não, não desistiria de tentar olhar para cima - mesmo que tivesse que desafiar o sol novamente - , não desistiria de perseguir o gato e...sim, até pularia aquele altíssimo (!) portão.
Claro que depois que envelheci esta perspectiva mudou pavorosamente...---------------------------------//----------------------------
Mais um clarão daquela caixinha preta registrou meus ingênuos e cândidos anseios para a posteridade...
Segunda-Feira, 8 de Maio de 2006.Novos clarões em um
canto distinto do horizonte denotam que a chuva não vem mais...me abandonou ! Apenas deixou a opressão de recordação.
Mas voltando...
Vergonha de ter raiva e orgulho simultaneamente?! – Rolo no chão de tanto rir de mim mesmo por semelhante besteira, sou um homem ridículo, essencialmente ridículo...
Por quê uma criança de menos de três anos deixaria de estar certa ? Apenas seguia seu instinto de curiosidade. Mas eu, no meu estado atual, tenho opções...convenhamos !!!
Uma das pessoas que vislumbro no pátio - acho que uma das que me causa sentimentos mistos (não tenho muita certeza e isso sinceramente pouco importa, ou nada importa) - , passa correndo perto de mim...
Não. Não saio correndo atrás (como por reflexo). Olho para a coisa mais interessante próxima de mim (o bico de minha bota) e penso : “
Somente uma criança de três anos...ou uma pessoa com mentalidade de três anos é “inteligente” o suficiente para desperdiçar energia atrás de algo tão insignificante e...e com menos de um décimo de sua inteligência !!”Nestes momentos falta alguém para te segurar no último segundo...e, portanto, devemos evitar quedas desnecessárias.
Como não poderia faltar, deixo escapar meu sórdido e sarcástico sorriso...tão ridículo que ilumina a escura manhã de segunda-feira.
P.S 1 –
Somente a vergonha na cara nos salvará.P.S 2 –
Repitam três vezes ao acordar e antes de dormir.